"O sonho de Pedro de Passos Coelho"
por JOSÉ VÍTOR MALHEIROS (in Público,
de 11 de Setembro de 2012)
«"Um terço é para morrer. Não é que tenhamos
gosto em matá-los, mas a verdade é que não há alternativa. se não damos cabo
deles, acabam por nos arrastar com eles para o fundo. E de facto não os vamos
matar-matar, aquilo que se chama matar, como faziam os nazis. Se quiséssemos
matá-los mesmo era por aí um clamor que Deus me livre. Há gente muito piegas,
que não percebe que as decisões duras são para tomar, custe o que custar e que,
se nos livrarmos de um terço, os outros vão ficar melhor. É por isso que nós não
os vamos matar. Eles é que vão morrendo. Basta que a mortalidade aumente um
bocadinho mais que nos outros grupos. E as estatísticas já mostram isso. O Mota
Soares está a fazer bem o seu trabalho. Sempre com aquela cara de anjo, sem
nunca se desmanchar. Não são os tipos da saúde pública que costumam dizer que a
pobreza é a coisa que mais mal faz à saúde? Eles lá sabem. Por isso, joga tudo a
nosso favor. A tendência já mostra isso e o que é importante é a tendência. Como
eles adoecem mais, é só ir dificultando cada vez mais o acesso aos tratamentos.
A natureza faz o resto. O Paulo Macedo também faz o que pode. Não é genocídio, é
estatística. Um dia lá chegaremos, o que é importante é que estamos no caminho
certo. Não há dinheiro para tratar toda a gente e é preciso fazer escolhas. E as
escolhas implicam sempre sacrifícios. Só podemos salvar alguns e devemos salvar
aqueles que são mais úteis à sociedade, os que geram riqueza. Não pode haver uns
tipos que só têm direitos e não contribuem com nada, que não têm
deveres.
Estas tretas da democracia e da educação e da saúde para todos
foram inventadas quando a sociedade precisava de milhões e milhões de pobres
para espalhar estrume e coisas assim. Agora já não precisamos e há cretinos que
ainda não perceberam que, para nós vivermos bem, é preciso podar estes
sub-humanos.
Que há um terço que tem de ir à vida não tem dúvida nenhuma.
Tem é de ser o terço certo, os que gastam os nossos recursos todos e que não
contribuem. Tem de haver equidade. Se gastam e não contribuem, tenho muita
pena... os recursos são escassos. Ainda no outro dia os jornais diziam que
estamos com um milhão de analfabetos. O que é que os analfabetos podem
contribuir para a sociedade do conhecimento? Só vão engrossar a massa dos
parasitas, a viver à conta. Portanto, são: os analfabetos, os desempregados de
longa duração, os doentes crónicos, os pensionistas pobres (não vamos meter os
velhos todos porque nós não somos animais e temos os nossos pais e os nossos
avós), os sem-abrigo, os pedintes e os ciganos, claro. E os deficientes. Não são
todos. Mas se não tiverem uma família que possa suportar o custo da assistência
não se pode atirar esse fardo para cima da sociedade. Não era justo. E temos de
promover a justiça social.
O outro terço temos de os pôr com dono. É
chato ainda precisarmos de alguns operários e assim, mas esta pouca-vergonha de
pensarem que mandam no país só porque votam tem de acabar. Para começar, o país
não é competitivo com as pessoas a viverem todas decentemente. Não digo voltar à
escravatura - é outro papão de que não se pode falar -, mas a verdade é que as
sociedades evoluíram muito graças à escravatura. Libertam-se recursos para fazer
investimentos e inovação para garantir o progresso e permite-se o ócio das
classes abastadas, que também precisam. A chatice de não podermos eliminar os
operários como aos sub-humanos é que precisamos destes gajos para fazerem
algumas coisas chatas e, para mais (por enquanto), votam - ainda que a maioria
deles ou não vote ou vote em nós. O que é preciso é acabar com esses direitos
garantidos que fazem com que eles trabalhem o mínimo e vivam à sombra da
bananeira. Eles têm de ser aquilo que os comunistas dizem que eles são:
proletários. Acabar com os direitos laborais, a estabilidade do emprego,
reduzir-lhes o nível de vida de maneira que percebam quem manda. Estes têm de
andar sempre borrados de medo: medo de ficar sem trabalho e passar a ser
sub-humanos, de morrer de fome no meio da rua. E enchê-los de futebol e
telenovelas e reality shows para os anestesiar e para pensarem que os filhos
deles vão ser estrelas de hip-hop e assim.
O outro terço são
profissionais e técnicos, que produzem serviços essenciais, médicos e
engenheiros, mas estes estão no papo. Já os convencemos de que combater a
desigualdade não é sustentável (tenho de mandar uma caixa de charutos ao Lobo
Xavier), que para eles poderem viver com conforto não há outra alternativa que
não seja liquidar os ciganos e os desempregados e acabar com o RSI e que para
pagar a saúde deles não podemos pagar a saúde dos pobres.
Com um terço da
população exterminada, um terço anestesiado e um terço comprado, o país pode
voltar a ser estável e viável. A verdade é que a pegada ecológica da sociedade
actual não é sustentável. E se não fosse assim não poderíamos garantir o nível
de luxo crescente da classe dirigente, onde eu espero estar um dia. Não vou
ficar em Massamá a vida toda. O Ângelo diz que, se continuarmos a portar-nos
bem, um dia nós também vamos poder pertencer à elite."»
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