quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Portugal e os cidadãos de primeira

Por António de Sousa Duarte
Ex-jornalista, consultor de comunicação, doutorado em Ciência Política

As mortes de Vítor Alves, capitão de Abril, e do cronista cor-de-rosa Carlos Castro mostram algumas evidências sobre o país
Separadas por escassas horas, as mortes do coronel Vítor Alves, "capitão de Abril", e do cronista "cor-de-rosa" Carlos Castro tiveram o condão de fazer notar uma vez mais algumas evidências sobre Portugal e os portugueses que nunca será de mais destacar. Na verdade, mesmo admitindo as macabras circunstâncias em que Castro foi assassinado e os requintes de malvadez de que foi aparentemente vítima, não parece normal que tal facto tenha merecido tão esmagadoramente maior espaço mediático do que o desaparecimento de um dos principais símbolos da Revolução do 25 de Abril de 1974 e destacado operacional da construção do processo democrático.
Vítor Alves faleceu domingo, cerca de 36 horas depois da morte, em Nova Iorque, de um colunista social conhecido por se dedicar há décadas a analisar os factos da actualidade "cor-de-rosa" nacional. Considerado em muitas das biografias espontâneas que dele nos últimos dias chegaram ao nosso conhecimento como "um cidadão de primeira", Vítor Alves foi um homem probo, sério, rigoroso, sensível que contribuiu de forma decisiva - antes e depois do dia 25 de Abril de 74 - para o actual regime democrático em Portugal. Vítor Alves, que integrou, com Vasco Lourenço e Otelo Saraiva de Carvalho, a comissão coordenadora e executiva do MFA (Movimento das Forças Armadas), foi o autor do primeiro comunicado dirigido à população no dia 25 de Abril e o militar que foi o porta-voz do Movimento. Mas as exéquias mediáticas de Vítor Alves foram curtas, muito curtas, se levarmos em conta a importância do seu legado e o impacte informativo que outros factos da actualidade suscitaram e de que é exemplo, sublinho, a vaga noticiosa relativa à morte de Carlos Castro.
O país trocou "um cidadão de primeira" por uma "história de segunda", mas o desiderato é positivo: chancela-se a morte do militar, político, ministro e conselheiro da Revolução em rodapés a correr e baixos de página e atribuem-se honras de Estado... mediático ao assassinato do cronista (não cronista social como alguns lhe chamam, como se Carlos Castro e Fernão Lopes fossem páginas do mesmo livro...) e às incidências macrotrágicas em que foi encontrado o seu corpo após alegada tortura, castração e assassinato. Mas a responsabilidade de todo este "estado a que - de novo e citando Salgueiro Maia - chegámos" não é do povo. Porque não é o povo que edita jornais, blocos noticiosos, telejornais ou sites. Nem é o povo o responsável por Marcelo Rebelo de Sousa ter dedicado ontem, no Jornal da TVI, mais tempo de antena à morte de Carlos Castro do que ao desaparecimento de Vítor Alves.

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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

por pillar del rio companheira de Zé

Há alguns anos um cineasta espanhol quis retratar o sofrimento e a capacidade combativa de um grupo de trabalhadores que não aceitavam que as diversas engenharias financeiras já então em uso fechassem uma empresa rentável e com futuro. Os trabalhadores de Sintel, que assim se chamava a firma, desde os engenheiros de alto nível ao mais humilde operário, decidiram instalar-se no centro de Madrid num improvisado acampamento e ali viveram durante vários meses, assim reivindicando o seu direito ao trabalho, a manter uma empresa que com o seu esforço haviam consolidado, as suas vidas e as dos seu familiares, em resumo, em defesa da lógica humana frente à dos interesses materiais dos poderosos. Este acampamento recebeu o nome de Cidade da\Esperança e o filme que conta esta epopeia recebeu o título de “Levantados do Chão”. Também Chico Buarque de Holanda, quando quis prestar homenagem aos camponeses sem terra que ocupavam herdades no Brasil para demonstrar que o esbanjamento condena à humilhação e que o cultivo dos campos não é um luxo nem um capricho, compôs um tema a que deu o título de “Levantados do chão”, um coral que poderia ser entoado nos cinco continentes e em todos os idiomas, bastando que houvesse voz para denunciar o abuso e vontade de erguer-se, de levantar-se, apesar da ideia, habilmente difundida, de que a insubmissão não vale a pena, já que vivemos no melhor dos mundos possíveis.

Diz Saramago que o que há mais na terra é paisagem. Sim: paisagem e gente, os inúmeros Mau-Tempo com esse ou outro apelido, essa dinastia infinita de homens e mulheres cujo único património são os braços e a vontade, o imenso rio de pessoas que percorre o planeta bifurcando-se sem limites, como se fossem as suas veias, o bom sangue imprescindível para que a vida seja possível. Os Mau-Tempo vivem em Portugal e na Bolívia, na Nigéria, na Roménia, em Espanha, nos Estados Unidos, em Moçambique, na Malásia… Vivem silenciosos, emigrantes de si mesmos, escravos de trabalhos terríveis, são o sub-solo do sistema que se mantém porque eles estão presentes, embora invisíveis para quem usa estatísticas em vez de sensibilidade. Às vezes pedem socorro desde os seus países remotos ou desde a profundidade da sua condenação, outras vezes põem-se de pé e levantam as mãos ossudas e os punhos cerrados, mas sempre a máquina do poder os ignora, não importa que sejam a maioria, pertencem à casta dos Mau-Tempo, nasceram para sofrer e morrer en silêncio, enterrando-se uns aos outros, como se de uma confraria universal se tratasse. Os Mau-Tempo são as personagens centrais do romance de Saramago, são, junto com a paisagem, o que mais há na terra.

Que faremos, então? Que faremos com este livro, com este mundo, com esta gente? A virtude da literatura está em não ficar parada perante as portas do mistério, penetra-o, ilumina-o, de maneira que a consciência de quem lê, porque viu, já não poderá fingir que ignora. A pergunta impõe-se com mais veemência, rejeitando a indiferença como resposta, porque só os néscios e os maus de carácter podem virar as costas à questão que, humana e doloridamente, propõe este livro de José Saramago intitulado, e não por acaso, Levantado do chão, epopeia gigantesca de heróis não reconhecidos apesar de parecerem ter mais força que o sol que nos ilumina e serem, além do mais, a matéria de que todos somos feitos. Repitamos, pois, as perguntas desde há tanto tempo gritadas: Que faremos com esta gente? Que faremos com este mundo? Perguntemos e logo prossigamos a leitura deste livro que indaga e questiona com irreprimível força, ouvindo a história daqueles que sempre foram os sujeitos da história, embora não os protagonistas nos manuais que a contam ou nos ridículos Götha em que alguns pretendem distinguir-se. Deixemo-nos ficar na literatura, junto aos Mau-Tempo, nossos contemporâneos, e com eles vivamos ao menos o tempo que durar a leitura deste livro que é mais do que arte, e já veremos o que sucede depois, se somos iguais ao que éramos antes ou se nos damos por esclarecidos.

Existiu Monte Lavre e existiu a chuva. E Domingos Mau-Tempo e Sara da Conceição. E os seus filhos e os filhos dos seus filhos. Tinham os olhos azuis, mas outros Mau-Tempo os terão negros e continuarão a levar o mesmo apelido. Há dinastias imprevisíveis que percorrem a terra povoando-a e lavrando-a como se ela fosse gente. Esta dinastia também se pode numerar com cardinais, mais ainda, os cardinais são seus, ninguém tem mais direitos que eles, porque a aristocracia do trabalho é a única desejável, a única que revalida a sua legitimidade geração após geração sem produzir zângãos como as anacrónicas heranças de sangue dos Norbertos, Albertos, Lambertos e Dagobertos, tantas vezes abençoados pelo padre Agamedes e por toda a fauna que do alheio faz sua aspiração e sua casa, como se o mundo não começasse de cada vez que nasce um humano para remediá-lo. Falemos, pois, dos que nada têm, falemos dos nossos, dos Mau-Tempo que vêm em frágeis barquinhos desde África até à opulenta Europa, falemos dos Mau-Tempo que esperam no corredor de um hospital ou na intranquilidade da sua casa uma operação cirúrgica que nunca chega, falemos das migrações sucessivas do campo à cidade e outra vez ao campo, sempre perseguindo um sonho, falemos de nós próprios, que vemos a desesperança e não podemos evitá-la, e isso nos impede de ser felizes. Falemos, sim, do poder que nasceu para impor-se, e falemos das leis que deveriam evitar os excessos de homens que se consideram superiores, leis que tantas vezes serviram para consolidá-los e outorgar-lhes legalidade. Falemos de nós próprios, que somos capazes de ler este livro e sem embargo não podemos impedir a tortura de Germano Vidigal nem as que agora se infligem em Guantânamo contra homens de tez escura e sem nome, oculto como eles por decisões tão ilegais como criminosas, nem a dos Mau-Tempo que hoje perderão o seu trabalho na ignomínia de uma crise económica provocada e talvez não encontrem ninguém que as escreva e descreva para que a sua dor não seja absoluta, mas partilhada.

E assim, caminhando e vendo como o mundo não cresce nem em piedade nem em sabedoria apesar do tempo e dos inventos, um dia distraído chega em que te pedem algo assim como um prólogo para um grande livro que vai ser reeditado. Agradeces, dizes que o farás, mas quando te informam de que se trata de Levantado do chão experimentas os suores do homem que descobriu o fogo ou calculou a profundidade dos primeiros passos na Lua, e, já sem outro remédio que pôr-te à escrita, olharás em frente como é de lei, mas procurarás um apoio para percorrer o livro, talvez a mão de uma mulher Mau-Tempo, uma que experimentou o gozo de integrar uma manifestação sublime, embora logo, para sua desgraça, tenha descoberto que todas as festas têm um fim e às vezes, como em épocas pretéritas, a exaltação não dura mais que umas horas, o tempo necessário para que as hostes de reagrupem e o imperador mande queimar Roma. Uma mulher guia que aprendeu por experiência que os dias levantados e principais podem sê-lo todos, desde que sejam fruto do esforço e da consciência crítica, não de um tempo que não saiba assinalar factos e datas para distinguir-nos no magma confuso que nos habita e que habitamos, por esta ordem.
Ou seja, uma mulher leva-nos por dentro do livro de Saramago, esse que escreveu para contar de outra maneira a vida de gentes que se confrontam com a fatalidade como se combater fosse o seu destino e não levar um salário para casa, trabalhar em boa paz e celebrar uma boda com alguma coisa mais que uns bolos secos e a promessas de filhos que amanhã serão o sustento dos pais e hoje a aflição de ter que repartir a sardinha. Digamos então que Faustina, que se foi com o noivo e com ele, a céu aberto,

Acabaste de iniciar sessão perto de Ponte de Sor a partir de um dispositivo novo?

  Diz-nos se não foste tu, Americoaze.       Americoaze Azevedo                 Aviso de segurança: início de sessão perto de Ponte de Sor a...